terça-feira, 8 de maio de 2007

De como eu aprendi a arte de cometer pequenos delitos

Em tempos de criança nosso prazer era o sorriso. Viver era traquinar. De dever era a escola e a igreja. Professor ou padre dissessem, era dito. Pecadores que éramos, o confessionário era muito freqüentado: lugar sério e opressor. O clima de julgamento nos dava frio na barriga. Então um dia, algo muito especial se deu. Estávamos lá e veio o padre M. Nunca havíamos nos confessado com ele. Vagarosamente, com seus mais de oitenta anos, ele vinha. Entrou. Entrei. Sua voz era muito baixa, um quase nada, o que fez com que eu sentasse muito perto. Era mesmo uma confissão, ao contrário de todas as outras vezes: “Padre eu pequei. Eu e meus amigos tocamos as campainhas das casas e saímos correndo. A gente sempre faz isso.” Silêncio. Ele olhava para algum lugar muito longe dali. Olhava para o chão, mas não era para o chão que ele olhava. Olhava para algum lugar muito longe dali. Com um olhar difícil de descrever, muito calmo, de muita paz – um olhar de oitenta e poucos anos. Ele disse: “Você sabe que está errado, não é?” Eu fiz que sim com a cabeça. Ele então continuou bem baixinho: “Da próxima vez faça o seguinte: toque a campainha, corra um pouco no sentido contrário e depois passe tranqüilamente na frente da casa. Assim, se o dono ou a dona saírem para ver quem foi jamais irão desconfiar de você.” Eu demorei pra entender o que ele estava dizendo. Ele ficou calado, esperando. Então perguntei: “É só isso padre?” E ele: “Comigo nunca falhou.” Algumas semanas depois, enquanto eu ainda estava com aquilo na cabeça, fiquei sabendo que o padre M. havia falecido. Ele tinha câncer.

A igreja diz que é pecado contar o que se passa dentro do confessionário. Mas não seria pecado maior ainda não compartilhar isso que me aconteceu? Que este relato seja então mais um pequeno delito e que ele possa operar nas crianças que chegarem até aqui um pouco do que ele operou na criança que estava lá.

Um comentário:

Raphael disse...

Caramba Rocco, adorei essa sua história. Muito bacana, essas coisas marcam mesmo, e foi pra algo positivo, então, fimose!
Abraços!
PS.: estou acompanhando agora seu material, mas como um livro, não posso começar a ler pelo final, mas sim pelo começo!

quando a concisão da palavra não me bastar fui ser conciso na vida