sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A velha máquina

Chamava-se Dona Chica, a senhora da casa velha. Era solitária. Da família pouco sobrara - apenas pessoas desconhecidas que a deixavam sem graça com suas presenças. Nunca gostou de animais. Sinusite. Sobrava de companhia apenas aquele objeto antigo, enferrujado em seus cantinhos, mas com o qual ela tinha todo cuidado ao manusear, um quase amor. Sua querida Singer. Uma máquina de costura pretinha.

Quando jovem, dizia muito que pra ela pouco bastava. E sempre foi assim mesmo. Tudo foi pouco e bastou. Cuidar da casa, ficar quietinha e costurar. São três coisas que ela fazia com maestria. Que aprendeu desde cedo e exerceu por muito tempo. E continuaria não fosse uma terrível tragédia.

Naquele dia acordou cedo como de costume, ao receber o toque dos primeiros raios de luz que atravessavam sua cortina amarelada. Foi ao banheiro lavar o rosto, mas desistiu ao sentir o gelo da água. Raspou um restinho de pasta de dente que sobrava na pia. Foi pro quartinho pegar a vassoura. Varreu ouvindo seu rádio. Tinha o programa de um padre muito bom nesse horário. Terminou a tempo de colocar o feijão. Nunca almoçava depois do meio-dia e meia. Comeu. Lavou a pouca louça. Cochilou um pouco, no sofá da sala, tranqüilamente. Não sabia que seria a última vez.

Acordou com a saliva caindo em uma das mãos. Enxugou o canto da boca. Levantou-se e foi ao banheiro, fazer o que não havia conseguido de manhã. Mijou primeiro, depois lavou as mãos e o rosto. Já era hora de sentar à máquina, onde gastaria o resto do dia.

Com mãos hábeis, manejou o tecido e a linha. O pé marcava o compasso do entra-e-sai da agulha afiada, girando a correia de couro. Ela e a máquina pareciam acopladas de maneira perfeita, pareciam uma coisa só. Mas, neste dia, algo muito estranho aconteceu, algo que nunca havia acontecido: Dona Chica furou o dedo com a agulha de sua máquina! O pequeno pedaço de metal atravessou sua carne com precisão, fazendo o sangue aflorar rapidamente, avermelhando o pano branco que estava sendo manuseado. Ela olhou abismada para o sangue na ponta do objeto afiado que a cosera.

O fato inusitado reavivou uma seqüência de lembranças em Dona Chica. Um turbilhão de memórias que estavam há muito tempo adormecidas, quietinhas, como ela mesma. Lembrou-se de quando aprendia as primeiras lições de costura, com sua mãe, nesta mesma Singer. Lembrou-se dos primeiros trabalhos que lhe renderam alguns trocos e de como isso a deixou orgulhosa de si. Lembrou-se dos dias em que, ainda casada, passava as melhores horas do dia, ao lado de sua máquina, poupando-se do marido. Lembrou-se também da primeira vez que teve de levá-la ao conserto, e ficou com medo ao se deparar com um homem barbudo, rústico, pegando-a com violência e a carregando para dentro da oficina. Lembrou. Eram memórias - imagens. Ela via tudo nitidamente. Ela se entregava à força das imagens.

Levemente, vagarosamente, sua perna começou a descolar da cadeira. Foi um movimento tão sutil, que Dona Chica nem percebeu. A banha que balançava na parte anterior de sua coxa estava completamente no ar. Suas mãos, uma sangrando e outra não, tentavam segurar a mesa, não por perceberem que se afastavam, apenas por reflexo. Dona Chica ainda não se dera conta do que acontecia naquele momento. Seu vestidinho verde, de pano ridículo, rasgou facilmente ao enroscar-se no pedal de metal. A cadeira caiu. Dona Chica estava na horizontal, completamente no ar. Seu corpo foi subindo de pouco em pouco, até alcançar o teto. Quando, lá de cima, ela sacudiu as memórias e olhou para a máquina, viu uma gotinha de sangue cair de seu dedo, sua alma tremeu: Ela estava voando!

Ela não entendia o que estava acontecendo, mas a sensação era boa. Era como se ela houvesse se livrado de todo o peso de sua existência. E mais interessante que isso, era o ponto de vista que ela tinha ali de cima: sua velha casa parecia outra, era mais bela, bem planejada. Ficou orgulhosa. A Singer também não ficava mal. Gostou. Olhou para o lado e deu de cara com a lâmpada. Achou engraçado. E nas primeiras vinte e quatro horas foi assim, ela se divertia com a situação, mas como toda novidade, depois de um tempo, começou a se cansar.

Os dias passavam e ela permanecia ali, na mesma posição. Tentou de todas as maneiras descer e continuar sua vida normalmente, mas tudo em vão. Suas forças diminuíam, a fome era lacerante. Ela estava suja, precisava se limpar. Nada podia fazer. Não gritou por ajuda. Tinha vergonha, pois suas necessidades fisiológicas encontravam-se logo abaixo dela. A roupa também estava suja com seus excrementos. Chorou algumas vezes. Depois se acalmou. Decidiu ser racional e analisar a situação friamente. Chegou a uma conclusão: o melhor a fazer era esperar. Sim! Simplesmente esperar. E foi o que ela fez. Ficou quietinha, no teto de sua sala, esperando a morte chegar. Ficou quietinha, como durante toda a sua vida sempre fizera.

quando a concisão da palavra não me bastar fui ser conciso na vida